quinta-feira, 22 de abril de 2010

Combinação explosiva

Publicado em 21/04/2010

O que acontece quando juntamos a fraqueza da gravidade com a estranheza do vácuo? A resposta é um novo efeito físico descrito por dois brasileiros na ‘Physical Review Letters’.

Combinação explosiva

Dom Quixote e Sancho Pança retratados por Pablo Picasso (1881-1973). Assim como os paladinos imortalizados por Miguel de Cervantes (1547-1616), a gravidade e o vácuo no mundo quântico são fracos separados, mas sua combinação tem efeito surpreendente.

Terça, 20 de abril, véspera de feriado. Final da tarde. Meu programa de correio eletrônico indica nova mensagem, com arquivo PDF anexo. Leio o breve resumo. Percebo de saída ser coisa grande na área de física. Ligo imediatamente para a pessoa que me enviou a dica. Ele corrobora minha impressão inicial.

Sim, é importante. Sérá publicado na prestigiosa Physical Review Letters.

O estudo brasileiro é talvez um dos melhores resultados das últimas décadas na área de gravitação

São dois autores. Dois brasileiros: Daniel A. T. Vanzella e William C. C. Lima, ambos do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo. O artigo sai depois de amanhã.

Vanzella e Lima perceberam as consequências (inusitadas) de se juntar a fraqueza da gravidade com a estranheza do vácuo. Na opinião de especialistas, é um dos melhores resultados dos últimos tempos na interface entre gravitação e física quântica.

As quatro forças da natureza

Há quatro forças na natureza: forte, que mantém o núcleo atômico coeso; fraca, envolvida em certos tipos de radioatividade; eletromagnética, responsável pelo atrito e por você, leitor, não atravessar o local em que está sentado ao ler este texto; e a gravidade, que nos mantém ‘colados’ à superfície de nosso planeta ou faz os planetas girarem em torno do Sol, por exemplo.

Em nosso dia a dia, sentimos a eletromagnética e a gravidade. Esta tem papel fundamental nos fenômenos cosmológicos, na física do gigantesco, na física que envolve ou massas inimaginavelmente imensas e densas (estrelas de nêutrons, buracos negros, galáxias, aglomerados de galáxias etc.), ou velocidades próximas à da luz no vácuo (300 mil km/s). Nesse cardápio de fenômenos cósmicos e cosmológicos, a gravidade domina.

Mas no diminuto universo dos fragmentos de matéria, a gravidade tem outro papel.

A força forte e a fraca têm atuação restrita a distâncias da ordem de 10-15 m (0,000000000000001 m), ou seja, ao núcleo atômico. Nessas dimensões liliputianas, denominadas quânticas (daí, o nome física quântica), a gravidade é tida como insignificante. É 0,00000000000000000000000000000000000001 (10-38 vezes) mais fraca que a força forte. Ou seja, no domínio quântico, o da arena das entidades atômicas e subatômicas, a força gravitacional é para lá de desprezível.

Nos buracos negros, a gravidade reina absoluta. As massas desses populares objetos cósmicos são tão grandes que o puxão gravitacional que eles exercem em tudo o que está ao redor deles os transforma em sugadores insaciáveis de matéria e até mesmo de luz. Ao bancarem esses ralos cósmicos, ocorre um fenômeno em que a gravidade tem importância no mundo quântico: a criação de matéria e antimatéria nas ‘bordas’ do buraco negro, naquele limite que, se ultrapassado, leva a matéria a ser sugada, sem chance de voltar ao nosso mundo.

Será que o papel da gravidade em dimensões quânticas é mesmo desprezível?

Porém, mesmo esse fenômeno, resultante da interação da gravidade com o mundo quântico, tem consequências ‘pífias’: é impossível de ser observado em situações realísticas, dada a baixa taxa com que matéria e antimatéria são criadas. Ou seja, é ator coadjuvante.

Resumo: o papel da gravidade em dimensões quânticas é desprezível.

Será?

Dom Quixote e Sancho Pança

Agora, nossa história começa a ficar interessante. E o enredo segue mais ou menos o surrado dito ‘a união faz a força’. No caso, a insignificância da gravidade encontra um aliado igualmente sem papel quântico importante, o vácuo. É o conto dos anti-heróis, à la Dom Quixote e Sancho Pança. Separados, fracos; juntos, combinação explosiva, na definição do colega que me enviou a mensagem.

Advertência: sempre imaginamos que o vácuo é algo ‘vazio’. Bem, sinto informar que Aristóteles estava correto: a natureza abomina o vácuo. Este, no sentido clássico da palavra, não existe.

Experimento mental: saque toda a matéria de um recipiente. Mesmo assim, diz a física quântica, ficará lá um resto de energia, a chamada energia do vácuo. E, desse resíduo energético, pulularão, a todo instante, pares de matéria e antimatéria. O vácuo quântico é uma tormenta de criação e aniquilação. Está mais para fúria que para tranquilidade.

A dupla descobriu um efeito no qual um campo gravitacional bem comportado pode amplificar a energia do vácuo

Vanzella e Lima descobriram um efeito no qual um campo gravitacional bem comportado, como os inumeráveis que permeiam o cosmo, pode amplificar exponencialmente aquele ‘restinho’ de energia do vácuo. Amplificada, a energia do vácuo cria seu próprio campo gravitacional – lembre-se de que matéria e energia são equivalentes, como mostra a famosa equação E = mc2, de Einstein. Tudo se dá como se o vácuo estivesse devolvendo o favor àquele que o ajudou a se livrar de sua insignificância, a gravidade.

Como a massa de um bolo, a energia do vácuo cresce e passa a dominar a evolução do sistema em que ele está implicado. E aí, para usar linguagem do cotidiano, não tem pra ninguém!

A gravidade amplifica o vácuo, e a energia deste cria gravidade. Juntos, eles dominam, como os dois paladinos de Cervantes.

Vanzella e seu aluno de doutorado William Lima acreditam que esse novo fenômeno – que aqui ouso batizar efeito Vanzella-Lima – pode atuar em objetos cósmicos compactos, como estrelas de nêutrons, ou estruturas gigantescas, como aglomerados de galáxias.

Pausa.

Uma única pergunta

É feriado. E o bom jornalismo diz que eu deveria passar a mão no telefone e ligar para Vanzella. Mas imagino que ele deva estar exercendo o merecido sono dos justos...

“Alô, Vanzella, aqui é o Cássio, da Ciência Hoje...” (certo, parte do salário dos jornalistas é para incomodar gente nos feriados e depois das 22h em seus lares).

Digo que farei apenas uma pergunta: “Como um campo gravitacional bem comportado pode amplificar, de modo tão intenso, a energia do vácuo?”

Pergunta errada (para uma entrevista curta).

Vanzella me diz que a resposta vale um prêmio. E acrescenta que ele e Lima chegaram a essa conclusão depois de olhar os cálculos, analisar as equações.

Como o fenômeno ocorre ainda é um mistério

Portanto, como o fenômeno ocorre ainda é um mistério. Mas isso não significa que eles ainda não tenham uma hipótese para explicar a descoberta – leia mais sobre isso em breve neste blogue.

A conversa ganha corpo. Vanzella me diz que a energia do vácuo cresce tão rapidamente que, em questão de milissegundos, caso tomemos como exemplo uma estrela de nêutrons, ela já é maior que a do campo gravitacional (inicial) daquele objeto.

Por que milissegundos?

Essa escala de tempo tem a ver com o tempo que a luz levaria para atravessar o próprio sistema. Como uma estrela de nêutrons é muito compacta (tem diâmetro, se me lembro bem, na casa de poucos quilômetros), o tempo de travessia – e, consequentemente, de dominância do vácuo – é irrisório.

Minha curiosidade: “E depois de a energia do vácuo dominar o sistema, o que acontece com este último?”.

Vanzella diz que esse é o tópico do próximo artigo sobre as consequências do efeito Vanzella-Lima. O fato é que a energia do vácuo, em função do novo efeito, dobraria a cada 10-5 segundo em uma estrela de nêutrons. E não pararia de crescer.

Mas e o destino da estrela?

Vanzella arrisca dois cenários: i) o sistema explode e retoma a estabilidade (a energia do vácuo voltaria à sua insignificância); ii) a energia cresce, cresce, cresce... e a estrela se torna um buraco negro.

Em tempo

Vanzella já escreveu para a Ciência Hoje artigo em coautoria com Geroge Matsas, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista, sobre buracos negros. Quanto ao jovem Lima, começa a carreira emplacando um Physical Review Letters de peso. E, se a ousadia desta coluna vingar, dando nome a um novo efeito.

Estou curioso com os desdobramentos dessa história. Prometo segui-la.

Bom feriado a todos.

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje / RJ